OBS: Artigo criado por Alexandre Spengler (head of product, Nubank), originalmente publicado aqui.
Esse talvez seja um dos artigos que eu estou a mais tempo postergando para escrever, junto com um artigo sobre como fazer bons 1on1s que logo devo colocar no papel também. O motivo dessa demora é que tanto sobre Tour of Duty, quanto sobre 1on1s, tem muito material na internet que toca nesses assuntos e eu sempre penso “será que precisa de mais um?”. Obviamente a conclusão que eu cheguei é que sim, precisa, então vamos lá!
Tour of Duty, para quem nunca ouviu falar, é um framework apresentado no livro “The Alliance” pelo Reid Hoffman, Chris Yeh e Ben Casnocha (você pode ler um bom resumo aqui) que tem como um dos grandes objetivos aumentar a probabilidade de você reter os grandes talentos do seu time. Em um momento onde existem vagas de Product Managers para todos os lados, e segurar um bom PM na sua empresa é praticamente uma guerra da carne, eu diria que que ter um Tour muito bem alinhado com todas as pessoas do seu time é algo que você já deveria estar fazendo.
A primeira vez que eu tive contato com o framework de Tour of Duty foi através do Aluysio Ferreira, hoje na Involves, quando ele deu uma talk na Resultados Digitais sobre o assunto por volta de 2016. Depois disso acabamos usando amplamente ToDs na RD, e eu criei o hábito de aplicar isso com o meu time (formal ou informalmente) até hoje, mesmo no Nubank, o que me rendeu alguma experiência sobre como aplicar esse negócio.
Na prática, fazer um Tour of Duty, é como criar um Plano de Negócio. O documento em si, na minha visão, não tem tanto valor assim, mas as discussões entre líder e liderado durante o processo de construção do documento são valiosíssimas. Em resumo, o ToD é uma espécie de contrato informal que vai ajudar líder e liderado a alinhar um certo desafio por um determinado período de tempo (normalmente de 1–2 anos) que, caso o PM execute com sucesso, irá agregar conhecimentos, habilidades e experiências que irão habilitar esse PM a dar saltos expressivos na sua carreira. Como resultado disso a empresa, por ajudar este PM, irá se beneficiar com o resultado do seu trabalho e com a retenção desse PM por um período significativo de tempo.
Na minha experiência, ter um ToD bem alinhado é muito mais significativo para a retenção de pessoas do que aumento de salário, por exemplo. Já passei por inúmeras situações onde claramente a oportunidade que eu tinha para oferecer para um PM do meu time fazia muito mais sentido para aquele PM do que as ofertas que estavam chegando de outras empresas, por mais que o salário que no momento eu poderia oferecer era inferior. Ter esse tipo de “arma” no momento que um PM do seu time recebe uma oferta externa pode ser a diferença entre segurar ou perder um grande talento. Isso porque, desde que você consiga pagar um salário minimamente competitivo, a sua principal moeda de retenção não é grana, é o conhecimento e as experiências que você possibilita para determinada pessoa.
Dito tudo isso, como você pode criar um Tour of Duty com cada pessoa do seu time? Para facilitar esse processo você pode utilizar esse template que eu construí e utilizo hoje no Nubank. Para dar os devidos créditos esse template foi inspirado em um template não público do Gabriel Costa, com quem eu tive o prazer de trabalhar na RD e recentemente gravei um podcast, sobre Product Led Growth, que foi ao ar em Fevereiro no Product Backstage. Na sequência vou detalhar cada seção do template para facilitar o entendimento e preenchimento dele. Mas antes, vale ressaltar que esse documento que eu vou apresentar deve ser preenchido pelo PM e, revisado por você, líder. Não o contrário.
Quais são os seus planos de vida?
Tipicamente gosto de começar qualquer documento falando sobre o contexto atual, e o Tour of Duty não é diferente. O primeiro passo é ter uma conversa honesta sobre qual é o contexto atual da vida dessa pessoa (é importante ser aberto aqui e falar tanto da vida profissional quanto da vida pessoal), incluindo também os planos futuros. Nessa seção eu espero ver desde coisas como “sou casado, tenho um cachorro e adoro ter tempo para tomar um café e ler um bom livro pela manhã” até “no futuro quero ser C-Level de uma empresa de sucesso como o Google, ter dois filhos e morar no exterior”. Quanto mais detalhe melhor.
A ideia é realmente entender o contexto e o que essa pessoa quer de futuro, pois isso é importante para entender os anseios de cada liderado. Por exemplo, se eu tenho uma pessoa que é responsável por sustentar financeiramente a família inteira (manda dinheiro pra mãe, pai e por ai vai), sabendo disso talvez seja mais fácil de entender as ambições financeiras dessa pessoa. Essa conexão entre vida pessoal e profissional é fundamental.
Que emprego você gostaria de ter depois do seu atual?
Essa talvez seja uma das perguntas que as pessoas mais tem receio de responder. Mas de novo, a ideia do ToD é termos uma conversa honesta. O objetivo dessa pergunta é entender o que essa pessoa vê como próximo passo de carreira para ela. Entendendo isso, pelo menos duas coisas podem acontecer: 1) Você pode conseguir criar desafios similares ou até melhores dentro da sua empresa, possibilitando que o seu liderado alcance os objetivos dele sem ter que sair do emprego atual. 2) Você pode genuinamente conseguir ajudar essa pessoa a alcançar os objetivos dela e isso vai ser um diferencial competitivo seu perante a outras empresas no mercado. Em ambas as situações a retenção dessa pessoa em questão é um efeito colateral positivo.
Por fim, tem duas perguntas para entender o que faria essa pessoa sair antes da empresa e o que faria ela ficar por mais tempo. Ter conhecimento dessas informações é importantíssimo para conseguir criar a melhor experiência possível para cada liderado. Pode também ser um bom momento para realinhar expectativas, porque eventualmente algumas das coisas que aparecerem nesta parte podem ser irrealistas e quanto antes isso for discutido melhor.
Qual o objetivo do Tour of Duty?
Saindo da parte sobre “termos uma conversa honesta” e entrando na parte de “expectativas” a primeira pergunta é relacionada ao objetivo do ToD. O esperado aqui é que seja definido um objetivo que tenha valor para a empresa, no sentido de resultado de negócio, e para o liderado, de forma a colaborar com o desenvolvimento de carreira dele. Para ficar mais palpável isso posso citar o meu exemplo real (sem muitos detalhes): Atualmente o meu tour no Nubank é ajudar a empresa a ter sucesso com os nossos produtos para Pessoas Jurídicas. Incluindo aí criar uma estratégia, desenvolver os produtos e formar o time de PMs para liderar esse desafio.
Esse tour que eu citei ele faz sentido para o Nubank, porque PJ é uma parte importante da nossa estratégia e faz sentido pra mim, porque estou aprimorando os meus conhecimentos e ganhando experiência tanto na liderança de produtos, quanto na liderança de pessoas. Fora estar me proporcionando lidar com cenários que eu, particularmente, gosto muito como é o caso de B2B e produtos em fases iniciais.
O importante nessa pergunta é detalhar o máximo possível o objetivo em si, descrevendo em detalhes o escopo dele e definido pelo menos algumas metas que possam ajudar, no futuro, a entender se esse objetivo foi alcançado ou não.
Como a empresa e o colaborador irão se beneficiar desse Tour?
Já entrei um pouco nesse assunto na descrição da pergunta anterior, mas o importante nessas duas perguntas seguintes é detalhar como cada uma das partes vai se beneficiar com esse Tour of Duty. De novo, quanto mais detalhes melhor. No caso da empresa o ideal é linkar com os objetivos estratégicos e a missão da empresa, ou seja, precisa ser algo impactante. Já com relação ao liderado é importante olhar para as ambições de carreira e vida pessoal dele ou dela, entendendo se essas ambições estão sendo atendidas, ou seja, se a pessoa que você está liderando está se desenvolvendo e ganhando experiências em coisas que vão realmente ajudar ela no futuro.
Nesse ponto vale fazer duas observações importantes: 1) Como já citei, o ToD é um documento feito a quatro mãos (mas escrito pelo liderado). Para fazer sentido tanto liderado quando líder devem estar envolvidos e discutindo cada pergunta. Especialmente nessa seção de Expectativas é muito importante a participação do líder para dar a visão da empresa. 2) Eventualmente pode existir um Tour onde um dos lados está se beneficiando mais do que o outro. Esse cenário não é o ideal, mas pode acontecer. Caso aconteça, o mais importante é isso estar visível e alinhado entre ambas as partes.
Qual o cenário atual?
Por fim, as últimas perguntas são relacionadas ao cenário atual desse liderado. Essa é a única parte do documento que eu recomendo usar bullet points e a ideia aqui é colocar no papel coisas que já estão acontecendo que colaboram para o Tour of Duty e coisas que podem ser feitas já no curto prazo.
Para citar alguns exemplos, imagine que sou uma pessoa que quero começar a assumir uma posição de liderança, eu posso, hipoteticamente, falar que algumas coisas já estão acontecendo nesta direção, por exemplo: estou participando ativamente da construção da estratégia do produto X para 2020, estou mentorando informalmente fulano e ciclano, o time Y me vê como referência para assuntos XPTO, etc. Da mesma forma posso pensar em alguns próximos passos simples, como: Ser responsável pelo onboarding do/da nova PM que entra na próxima semana, participar como ouvinte das reuniões de liderança e fazer o curso de Product Leadership do Spengler =P.
A ideia geral desta parte é basicamente tangibilizar tudo o que foi discutido no ToD e dar visibilidade para coisas que já estão sendo feitas para alcançarmos os objetivos da empresa e do liderado. E, além disso, alinhar quais serão os próximos passos que podemos começar a fazer já no dia seguinte. Ter esses próximos passos definidos é importante para não deixar todo o clima que foi gerado durante as discussões do Tour morrer.
Antes de fechar esse post eu gostaria de ressaltar alguns pontos que acredito serem fundamentais para que todo esse processo de criação de um Tour of Duty dê certo:
- Sem dúvida nenhuma a construção do ToD ajuda líder e liderado a se conectarem e, consequentemente, isso gera um relação de confiança mútua ainda melhor. Mas é fundamental que antes de iniciar a construção do Tour você, na qualidade de líder, já tenha construído uma relação de confiança com o seu time, caso contrário o ToD pode ficar superficial.
- Apesar de eu (e os autores do framework) se referirem ao Tour of Duty como uma ótima ferramenta de retenção de talentos, esse não deveria ser o seu objetivo primário. A retenção de pessoas vai ser um efeito colateral positivo do objetivo de realmente criar uma experiência de desenvolvimento profissional e pessoal para cada um dos seus liderados desproporcionalmente melhor do que qualquer outra alternativa existente no mercado. É isso que irá reter as pessoas (se elas estiverem com o mindset de aprendizado).
- Criar um bom lugar para se trabalhar, onde as pessoas sentem que evoluem vai ajudar não só na retenção, mas na atração de novos colaboradores também. Esse é mais um motivo para você investir na experiência de cada pessoa que você lidera.
- Como disse, salário não é tudo, tem muitas outras coisas que pesam mais do que isso. Então se você está perdendo talentos do seu time porque o mercado está pagando mais, possivelmente você esta fugindo da causa raiz do problema. Mas, você deveria buscar estar pagando os melhores salários possíveis para o seu time, para esse e outros assunto eu super recomendo ler o deck de Cultura da Netflix, com o qual eu me identifico muito.
- Nem todo mundo precisa de um documento como o template que eu compartilhei. Para algumas pessoas o simples fato de vocês conversarem sobre o assunto já vai ser o suficiente para que vocês criem esse alinhamento. Já para outras, formalizar o que foi conversando em um documento vai ser importante, isso varia de perfil para perfil. Esteja aberto a adaptar o processo de acordo com cada liderado.
- Por fim, quando chegar a hora de um liderado deixar a sua empresa, faça isso da melhor forma possível e mantenha cada um deles próximo de você. Se tudo foi feito da forma correta, a relação que vocês criaram vai extrapolar o profissional. Isso já seria motivo o suficiente para você manter contato e entender como, mesmo de longe, você pode ajudar na carreira, e até na vida, de cada um. Mas além disso, manter esse contato e uma boa relação vai deixar portas abertas para o futuro, criando novas oportunidades de vocês trabalharem juntos novamente. Você também vai ter pessoas da sua confiança, que conhecem a sua realidade, tendo experiências em outras empresas e esses conhecimentos que eles vão adquirir podem ser muito valiosos para você e a sua empresa também. Por fim, essas pessoas que estão saindo podem espalhar por outros lugares o quão positiva foi a experiência de trabalhar com você e com a sua empresa, ajudando na atração de outros profissionais no futuro.
Para finalizar, vale reforçar que existem 3 tipos de Tour of Duty (Rotational, Transformational e Foundational) e, apesar de o template que eu apresentei aqui servir razoavelmente bem para todos, o meu foco é no Transformational, que é onde eu acredito que a maioria das pessoas se enquadra e onde se tem mais impacto do ponto de vista de retenção. Para saber mais sobre os tipos de ToD e mais detalhes sobre o framework em si, eu super recomendo essa aula, na plataforma de cursos online do Linkedin, dos próprios Reid Hoffman e Chris Yeh, que são fontes muito mais confiáveis do que eu! =)
Alexandre Spengler é head of product no Nubank e facilitador do Bootcamp Product Leadership na How.