OBS: Artigo criado por Valéria Romano (Product Designer, iFood) e publicado originalmente no Projeto Design2021, idealizado por Vitor Guerra.
O modelo mental humano e as regras da sociedade foram “design(adas)” muito antes dos objetos e interfaces que criamos existirem. Entender a origem e questionar nossos métodos é o primeiro e mais importante passo para criarmos produtos e serviços que moldarão, daqui pra frente, o futuro.
Minha missão nesse texto não é criar um processo novo, ou metodologias, mas uma discussão reflexiva sobre o design como um processo que não deveria pertencer apenas ao profissional de design, e como isso pode ser democratizado.
“Como a rocha que conhece o rio”
Essa citação tirada da série “Fargo” pode servir de reflexão sobre o começo de um projeto de design, onde há evidente necessidade de se olhar o que houve no passado para, enfim, aprender e seguir com novas ideias.
Mergulhando na raiz dos métodos de design, nos deparamos com um mundo no pós-guerra, entre a década de 50 a 60, quando nasce a “primeira geração de métodos de design” baseada no método científico e sistemático — claro, seus criadores eram em maioria engenheiros e projetistas que, com o objetivo de aumentar a indústria e facilitar o uso de máquinas para produzir mais, buscavam validar o Design como uma área da ciência.
Com isso podemos voltar ao nosso contexto atual, onde algumas coisas (como a pressão da indústria) claramente se repetem e vão continuar se repetindo ainda mais vezes. No entanto, percebemos algumas diferenças que em 2020 só aumentam: maior acesso à tecnologia, maior necessidade de pessoas que pensam e questionam o uso de ferramentas digitais, e uma mescla de profissionais em design de diversas áreas como o Design gráfico, arte contemporânea e design urbano para transformar o mundo físico com o digital.
Para onde vamos agora?
e como o contexto atual influencia diretamente o futuro da área de design?
Pessoas desconectadas: Ao mesmo tempo que temos uma maior necessidade de pessoas conectadas, encaramos a realidade de 46 milhões de brasileiros que não têm acesso à internet (segundo a CETIC, 2019). Além do fato dessa realidade refletir a falta de acesso à educação e a nossa diferença social em um mundo mais digital, pensar em alternativas para conectar pessoas sem dúvida será uma das prioridades do mercado.
Elitismo e design: O preço aproximado de um curso em UX Design no Brasil é de 1mil a 3mil reais. É possível que esse valor aumente pela alta demanda do mercado digital, e consequentemente o processo se torne cada vez mais exclusivo a pessoas de alta renda — e que não abrangem o grupo de minorias brasileiras.
Esse aumento da busca de mercado por profissionais de design, significa também que precisamos aumentar a inclusão de pessoas de outras idades, regiões, gêneros, deficiências, orientação sexual, raças, e nível de conhecimento — ou seja, aprendizes, estagiários, juniors.
Centralização de poder: No meu início de carreira ouvi uma vez “Bom, você como UX… qual o melhor caminho para o usuário?” e procurei na minha mente toda e qualquer pesquisa que poderia responder a pergunta, mas com os dados que disponíveis nesse projeto, o mais próximo que cheguei foi “Não sei, preciso testar”.
Essas situações de tomadas de decisão não deveriam ser de responsabilidade apenas do profissional de design, e por mais que o mercado tenha desenvolvido metodologias agéis (design sprint, facilitações, workshops etc) que tornam nossas decisões mais focadas em dores e metas do usuário, essas técnicas tem um limite de interatividade apenas em etapas específicas do projeto. A verdade é que o Designer continua sendo o profissional fechado em uma sala com alguns post-its procurando a melhor estratégia para solucionar problemas que envolvem muito mais do que aquele público-alvo, essa centralização de poder não permite ver quem é mais influenciado pelos produtos e serviços: as pessoas, o mundo, a sociedade.
Mas e se esse processo não pertence-se apenas à esse profissional? E se pessoas que não dominam design mas são diretamente e indiretamente impactadas pudessem participar e aprender ativamente nesse processo? E se nossos processos fossem totalmente transparentes, interativos e com intenção de democratizar e não de excluir?
Como democratizar o processo?
Algumas coisas que acredito que podemos trazer para iniciar com esse processo mais democrático:
1. “Wabi-sabi” — uma filosofia japonesa onde o belo é imperfeito, impermanente e incompleto.
Erramos o tempo todo e não admitimos. Poucos profissionais descrevem o caos do processo criativo nos artigos tão aplaudidos no Medium ou em um portfólio cheio de trabalhos realizados através de métodos “perfeitos”. Mas a verdade é que erramos.
Erramos porque o processo é um reflexo do nosso modelo mental, e por mais perfeito que tentamos ser, vamos errar.
Nosso processo é nossa luta individual contra os gatilhos mentais. Gatilhos como a aversão a perda e a prova social onde estamos constantemente nos comparado aos outros.
E quanto mais rápido você admitir que não vai salvar sua empresa/projeto por ser Designer ou muito f#da no que faz… mais rápido você erra e mais rápido você começa a aceitar que precisa de outras pessoas.
2. “Poder para o povo, combate ao sistema” — “power to the people, stick to the man”. Frase do filme Capitão Fantástico
A única forma de acabar com o poder é através da sua descentralização, e para descentralizar precisamos envolver mais pessoas no processo.
É claro que isso vai depender de alguns fatores: se você está em uma ambiente que te permite testar e errar, por exemplo.
Afinal, “envolver pessoas” é também entender se todos estão sendo incluídos no processo, se sabem usar e se têm acesso às ferramentas que você vai apresentar ou disponibilizar nas dinâmicas de criação e definição. Outras perguntas fundamentais para tal objetivo: se não se sentem excluídos na discussão, se entendem o espaço e momento atual dessas pessoas , qual retorno elas têm nesse processo ou, o que elas aprenderam?
Talvez no final você nem crie um produto ou serviço, ou invalide a ideia durante a etapa de pesquisa, mas seu processo não vai ensinar apenas você, como também beneficiar as outras pessoas envolvidas. Além disso, descentralizar ajuda o profissional de design a não sofrer um *burnout* com o nível de responsabilidade da área e do peso das decisões tomadas.
3. Talento ganha jogos mas trabalho em equipe e inteligência ganham campeonatos — michael b jordan.
Estar imerso no mundo do design desenvolve um ego e visão focada apenas no design, ignorando o mundo ao redor.
É claro que hoje temos alguns métodos bonitos pra tentar nos deixar mais abertos a outras idéias, incluindo facilitações em grupo e Design critique. Mas isso é o suficiente? Quando juntamos pessoas da área de tecnologia em uma sala virtual para avaliar produtos que vão afetar o mundo, é suficiente? Definitivamente, não.
Segundo Tenório (1990, p.2 em O mito da participação) “[…] participar é uma prática social na qual os interlocutores detêm conhecimentos que, apesar de diferentes, devem ser integrados. Que o conhecimento não pertence somente a quem passou pelo processo de educação formal, ele é inerente a todo ser humano”
O quão participativo é o seu processo? Que outras pessoas além da sua bolha tecnológica você tem envolvido, e o quanto é esse envolvimento?
4. Ouvir não é o suficiente, precisamos da escuta analítica.
A escuta analítica é uma prática da psicanálise mencionada por Freud, mas deveria ser mais vezes aplica ao processo de Design, onde não basta apenas ouvir (ou seja, utilizar apenas a audição como recurso de analise), a Escuta analítica comunica a atenção sem critica ou seleção do que é escutado, evitando se basear no que acha ser mais relevante.
Quando permitimos a escuta analítica também permitimos nos desprender de vieses e entender a realidade do outro.
5. “usuários” não são enquadrados e reconhecidos como trabalhadores de IHC. — Gonzatto, 2018
“Usuário é um termo utilizado em estudos e projetos de IHC para denominar a pessoa ou grupo de pessoas que usa artefatos computacionais. (…) também são trabalhadores da produção material e simbólica da realidade. Entretanto, na forma histórica que toma no modo de produção capitalista, “usuários” não são enquadrados e reconhecidos como trabalhadores de IHC.”(Gonzatto, 2018)
No meio profissional de design existe uma diferença normalizada: nós (designers), somos diferentes de, os “outros” (usuários).
Essa diferença propões uma segregação entre pessoas como se usuários não tivessem o mesmo “nível” intelectual para criar artefatos digitais e influenciar os próprios produtos.
Em um futuro cada vez mais digital, vai ser comum compartilhar com usuários, opniões e conhecimentos de usabilidade, além de discutir as intenções verdadeiras da criação de um produto/serviço, os usuários deixam de ser passivos e se tornam ativos e conscientes desse processo.
6. “A melhor câmera é a que você tem em mãos” — frase favorita de um dos meus professores de fotografia.
Eu era uma grande evangelista dos métodos de design, “Vamos fazer uma Jornada do usuário?”, “Aqui precisamos de um mapa de empatia”, adorava uma facilitação com vários canvas.
Mas o que a prática desses métodos me ensinou foi que não existe algo pronto, e que geralmente esses métodos são mais uma forma de organizar estratégias, pensamentos e alinhar o time.
Meus métodos favoritos agora são as adaptações, o envolvimento, preparação do “ambiente” e dar ferramentas para as pessoas resolverem os problemas certos, isso não significa que eu sei as respostas, mas que no lugar de tentar descobrir tudo e passar pelo caos criativo sozinha, eu envolvo times, pessoas e especialistas, transformando juntos o processo e os métodos de acordo com as perguntas, e não com as regras.
Design não é mais uma pessoa, mas sociedades.
Em resumo, o que acredito é que se existe uma forma de criar produtos e serviço para todos, com certeza é fazendo produtos com todos, mas ao mesmo tempo, essa criação precisa levar em consideração o contexto do país e das pessoas relacionadas, adaptando ferramentas para que elas sejam incluídas e empoderadas para solucionar os problemas.
Por fim, precisamos de um processo de educação em design de forma acessível, nossa profissão é cheia de privilégios e precisamos compartilhar o conhecimento, lugares como esse site (design2021) e alguns outros movimentos têm tornado o design um conhecimento mais livre.
Mas só podemos falar de design para todos, se formos parte dessa mudança e compartilhamos nossos aprendizados, permitindo novas mentes criativas surgirem e colaborarem, por exemplo, como podemos levar o conhecimento do design para a favela? Ou para pessoas mais velhas? para o governo? animais? crianças? A democracia do processo de design é possível, se nós, profissionais de design nos tornamos uma ponte e não o guardião ou guardiã dela.
Valéria Romano (Senior Product Designer no iFood) é facilitadora do Bootcamp UX para Chatbots, aqui, na How, com início no dia 05 de Abril. Para conhecer mais sobre o bootcamp, clique aqui.