OBS: Artigo criado por Koji Pereira (Head of Design, Lyft Business) e publicado originalmente no Projeto Design2021, idealizado por Vitor Guerra.
2021 é um ano de muitas expectativas, e muitos de nós estamos esperando que seja o ano da vacina que faça tudo voltar a normalidade. Não é? Mas se tem algo que aprendi na vida é que criar muitas expectativas gera ansiedade e grande parte das vezes frustração. É claro, quando criamos uma expectativa, estamos criando uma imagem, uma projeção do que esperamos, mas o mundo real é muito mais caótico que nossa imaginação, e 2020 provou isso. Então, no lugar de gerar grandes expectativas, eu queria refletir sobre 2020 e encarar 2021 como mais um ano como qualquer outro, onde precisamos continuar aprendendo e evoluindo.
Não vamos glamourizar a doença e a tristeza que ela trouxe, mas sim, 2020 foi transformador porque nos apresentou uma pandemia inesperada até certo ponto, onde tivemos que repensar a forma de trabalhar, de ajudar outras pessoas, do nosso papel no mundo e da nossa pequenez diante de um vírus. Transformador porque deixou claro problemas que irão se repetir se não pensarmos na forma como nos relacionamos entre nós humanos, e também entre o meio ambiente, e os animais não-humanos.
O COVID-19 foi identificado pela primeira vez em Wuhan, na China, em Dezembro de 2019. O vírus possivelmente se originou nos “mercados molhados” onde animais de diversas espécies animais vivos são vendidos — nestes amontoados de vidas em jaulas é onde vírus novos nadam de braçada. Esses ambientes criados por humanos se tornaram um acelerador de doenças, animais de biomas diferentes ficam próximos, num encontro entre espécies que se acontecesse naturalmente demoraria anos. Wet markets não são nada novos, e em certos aspectos olhando para trás, 2020 foi apenas mais um ano para pandemias transmitidas por animais em ambientes desenhados por humanos. Vaca louca, H1N1, H7N7, Mers, SARS, para citar algumas. Enquanto humanos demandarem produtos de origem animal, como carne, ovos, leite, mel, couro, pele, e animais continuarem sendo criados em ambientes artificiais, em outras palavras em jaulas onde vírus tem uma maior tendência de se desenvolverem.
E essa pandemia, que parecia algo inesperado, novo, algo que tecnicamente a gente não poderia prever — de certa forma foi prevista. E espero que você não ache que foi só o Bill Gates que sabia disso 5 anos atrás, porque especialistas falam de uma pandemia como o COVID-19 há anos. Não quero bancar a pessoa que proclama “eu te disse”. Não tem nada pior do que a pessoa que diz “eu te disse”, porque além de se auto proclamar saber de algo antes, ela também é uma pessoa que assume a incapacidade de comunicar o que sabia. O que quero dizer é que 2020 não é tão diferente de 97, quando eu com 17 anos tive meus primeiros contatos com a internet discada, fui descobrindo mais sobre um tal veganismo, mesmo sem produtos gourmets veganos que temos hoje, eu de alguma forma sabia que não fazia sentido tirar a vida de tantos animais, afetar o meio ambiente tão negativamente, ali mesmo decidi parar com produtos animais. E olha se não repensarmos, mais pandemias virão.
O que mais já sabíamos há anos atrás?
Em Ferguson, 2014, nos EUA, um garoto preto de 18 anos é morto a tiros pela polícia após roubar uma caixa de cigarros. 2015, No Rio de Janeiro um grupo de 5 amigos moradores de uma favela entre 16 e 20 anos voltavam do Parque de Madureira, quando o carro que estavam foi metralhado pela polícia. Os 5 morreram.
2020 infelizmente não foi diferente, tivemos exemplos no mundo inteiro de injustiça social, de assassinatos de pessoas pretas. Para não deixar de citar alguns nomes: Breonna Taylor, George Floyd, Rayshard Brooks, Daniel Prude, e no Brasil João Pedro Mattos, Kuan Alves de Almeida, Jean Silva, e Fabio dos Santos, e tantos outros e outras.
Em 2020 os protestos se espalharam pelo mundo por justiça racial e por direitos humanos. Parece que a discussão que até então não era aceita no ambiente de trabalho, virou uma obrigação — pelo menos nos EUA ou na minha bolha do vale do silício. Empresas, pessoas no trabalho começaram a discutir justiça social, justiça racial e acesso. Mas de fato, será que 2020 foi mesmo um ano especial? E será que 2021 será diferente? Eu sempre tento levar as coisas do ponto de vista positivo, pensar que estamos evoluindo. Mas ao mesmo tempo, até quando vamos esperar um novo 2020 para começar a discutir abertamente assuntos tão emergentes como racismo? Até quando vamos dizer que esses assuntos não pertencem ao ambiente de trabalho?
Uma evolução no lugar de um recomeço
Não estou aqui pra negar que 2020 foi um ano difícil, todo mundo que sobreviveu a 2020 deveria receber uma medalha. Mas apesar de difícil, muitas das dificuldades e desafios que passamos, aconteceram e inegavelmente vão voltar a acontecer.
Em 2021, o que gostaria de ver no lugar de uma expectativa em um recomeço, é uma progressão, uma evolução. O que espero é que continuemos a progredir como sociedade, ouvindo mais umas às outras. 2020 foi o ano onde vários debates foram abertos com a pandemia, com as injustiças raciais, de gênero, de orientação sexual e 2021 deve ser o ano onde esses debates continuam vivos e começam a solidificar como práticas — sim! Dentro e fora do ambiente de trabalho.
Inclusão e equilíbrio
Como todo mundo 2020 foi difícil para mim. Eu tinha acabado de entrar num novo emprego, a empresa que me mudei teve uma onda de demissões em massa — ainda bem, meu time não foi afetado diretamente, mas tive que manter a confiança interna em um momento onde eu mesmo me senti várias vezes perdido. Sim, um gerente pode se sentir perdido. Se estamos juntos temos que estar prontos para nos tornarmos humanos, e muitas vezes não ter a resposta imediata para tudo é a melhor forma de demonstrar liderança.
Nessa onda, eu também acabei montando uma live para ter conversas casuais já que o ambiente de cafezinho não existia mais trabalhando de casa para conversar com profissionais que admiro, acabei reencontrando várias pessoas sensacionais e tive a oportunidade de conversar com John Maeda. Nem preciso citar que como Designer, encontrar com John Maeda em uma conversa, mesmo que via Instagram, foi emocionante e extremamente enriquecedor. No seu livro de 2019 “How to Speak Machine: Computational Thinking for the Rest of Us”, Maeda explica que a tecnologia jamais conseguirá acompanhar essa a evolução que a sociedade precisa ver se quem cria essas tecnologias continua sendo um clube de homens brancos heterossexuais no Vale do Silício.
Eu passei anos no Google na nave mãe em Mountain View tentando criar novos produtos que funcionassem para o máximo possível de pessoas, pelo menos eu achava. Trabalhei em alguns que não foram os melhores sucessos, alguns produtos que tiramos do ar em 1 ano — alguém se lembra de Google+, Google Spaces ou Who’s Down? Só realmente consegui criar algo de extremo sucesso quando olhei para mim mesmo. De onde eu vim, para os problemas que estavam próximos da minha família na periferia de Belo Horizonte. Conversei com pessoas, amigos e familiares, transeuntes na praça 7, e muito frequentemente pessoas me contavam o quanto celulares ficavam imprestáveis em pouco tempo, lentos ou com espaço cheio na memória. Veja bem, para o cidadão não letrado em tecnologia, eles só querem receber uma imagem de um ente querido, jogar um jogo para passar o tempo, eles de fato não sabiam o porque os celulares iam deteriorando lentamente a cada update. Eu me apaixonei por esses problemas — e com um time fenomenal lançamos um produto chamado Files by Google — hoje o gerenciador de arquivos padrão do Android que ajuda usuários a apagar arquivos antigos, liberar espaço e por fim estender um pouco o tempo de vida de celulares Android. Talvez como designer, você que está lendo está acostumado a procurar o último iPhone e fazer seus designs no Figma usando os assets mais novos da última versão, mas a realidade do mundo é que 86% dos usuários de smartphone usam Android, e uma maioria esmagadora de usuários ~80% tem um telefone que custa não muito mais que 350 dólares, em uma conexão limitada pré-paga. Então, para quem você faz design?
Claro, antes do produto se tornar um sucesso com 500 milhões de usuários por mês, fizemos pesquisas na Índia, Indonésia, Tailândia e Brasil, incluindo as conversas que tive na praça 7. Mas o que realmente fez a diferença pra mim é que trabalhamos com pessoas que sabiam exatamente o que é ter celular que não funciona. Nosso time era composto por pessoas que cresceram com as limitações de acesso a tecnologia, com internet lenta, celulares baratos e computadores antiquados. Com um time diverso de gente dos mesmos lugares que fazemos pesquisa, como eu que cresci na periferia da zona norte de BH — a gente criou um produto que funciona para “gente como a gente” ao contrário daquela bolha costumeira do Vale do Silício.
Esse é um exemplo pequeno da potência que vejo em times diversos e inclusivos. Se você está criando um time, tenha certeza que você tenha uma representação boa do que é o mundo real, esse espectro multicolorido, com pessoas de diferentes criações, religiões, gêneros, etnias, ancestralidades, idades, orientações sexuais, necessidades especiais, posições políticas, etc. No final das contas, para criar tecnologias que realmente importam para o mundo e não só para seu grupo de pessoas parecidas com você, é preciso acabar com o grupo de pessoas parecidas em times. Vamos usar 2021 para evoluir!